
Cumpri mandato e meio como dirigente da Ordem dos Arquitectos. Primeiro na direcção nacional (2002-2004), depois na direcção regional Sul (da qual me demiti, por discordar profundamente do caminho seguido).
Aprendi bastante – e nem todas as lições foram agradáveis, mas aprender é sempre útil. Aproximando-se as eleições para a Ordem, sinto que devo partilhar algumas ideias que considero pertinentes – sem pretensões, como contributo para quem as quiser acolher.
I. As premissas
Uma instituição tem de ser pensada a partir dos seus princípios e da sua missão. Estes devem ser assumidos (e defendidos) sem hesitações nem ambiguidades, e devem nortear a relação da instituição com os seus membros, a sua estratégia e as suas acções.
Nunca é demais repetir que a primeira obrigação da Ordem dos Arquitectos é para com a Sociedade. Esta hierarquização não é prejudicial para os arquitectos, porquanto a obrigação em causa é a defesa da Profissão.
O correcto exercício desta profissão beneficia a comunidade e é necessário para a concretização de direitos de cidadania. É por isso que se justifica falar do direito à Arquitectura como se fala do direito à Justiça ou aos cuidados de saúde.
É por isso que temos uma Ordem, em vez de uma (mera) associação profissional, que poderia limitar a sua agenda aos interesses restritos dos profissionais, não passando do registo corporativo. E é por isso, ainda, que a Sociedade nos confiou duas competências fundamentais: conferir o título de arquitecto e zelar pelo seu bom exercício da Profissão. Temos nestas duas atribuições o essencial da missão da Ordem.
Esta é uma ideia chave para pensar a Ordem dos Arquitectos, especialmente agora, que haverá candidatos a propor alternativas de futuro… e votantes a avaliá-las.
Dois mandatos depois
Nas eleições de 2001, a lista encabeçada por Helena Roseta (que o meu amigo João Afonso me convidou a integrar) tomou por lema “Mudar a Ordem das Coisas”.
Havia muito a mudar, e penso que é inegável que, nestes quase seis anos, a Ordem dos Arquitectos teve um papel determinante em mudanças positivas importantes. Numa óptica de futuro destacam-se três domínios onde a mudança era (e continuará a ser) necessária.
No primeiro domínio – o da agenda política da Ordem – ela foi lançada com êxito e tem de ser continuada. No segundo – o da revitalização interna – ela viveu de avanços e retrocessos, e importa relançá-la. E no terceiro domínio – o dos factores de desregulação do mercado de trabalho – a mudança está, largamente, por lançar.
Partilhar a causa
Ao longo de dois mandatos houve, a nível nacional, uma clara mudança na postura da Ordem, que clarificou a sua agenda política, centrando-a no direito à Arquitectura, expresso como pertinente para um universo mais vasto do que a classe profissional.
A partilha desta causa com a sociedade civil (que nos confiou dezenas de milhar de assinaturas em duas petições) foi crucial para abrir novas áreas à intervenção pública da Ordem, conferir maior autoridade ao seu discurso e, claro, deu um empurrão decisivo à revogação do famigerado 73/73, que se arrastava há décadas.
Processo esse que ainda não está concluído, e é verdade que algumas propostas sobre a mesa são motivo de alguma apreensão. Mas ele está, finalmente, aberto, e a Ordem pode (e deve) abordar as negociações em curso com uma credibilidade acrescida.
Funcionar
Esta nova postura foi secundada por uma revitalização interna da Ordem.
Na Admissão e na Disciplina houve um trabalho assinalável, mau grado a polémica em torno dos regulamentos de admissão e a sensação crónica de inacção disciplinar (que, pelo menos a Sul, uma análise atenta dos dados pode desfazer).
No resto, houve avanços e retrocessos. As secções regionais tinham um papel fundamental a desempenhar, e a Sul (só falo do que conheço) este mandato não deu sequência aos progressos do anterior. É difícil encontrar um salto qualitativo no apoio à prática, na formação, nos concursos, na relação com as autarquias, no apoio às delegações e núcleos, ou na intervenção pública (onde se registou um silêncio por vezes revoltante…). Alguma coisa se fez, mas uma organização com meios faz sempre “algo”, a questão é saber se faz o que deve.
Houve uma Trienal, é certo. Mas esse evento foi a escolha errada do caminho mais fácil. A direcção do Sul optou por “cavalgar” a crescente relevância mediática da Arquitectura, em detrimento dos seus compromissos eleitorais, das necessidades dos membros e de outras tarefas tão ou mais importantes para a sua missão. “Promover a Arquitectura” é de facto uma das atribuições da Ordem. Mas há várias formas de o fazer, umas mais consistentes e outras mais superficiais e perversas – como esta, redutora no estilo, cristalizadora nas personagens e transmissora de uma imagem distorcida da profissão.
Regulação do mercado
Por fim (mas não menos importante), uma terceira mudança está largamente por concretizar: a intervenção da Ordem no domínio dos factores de desregulação do mercado de trabalho.
Dir-se-á que a Ordem não é um sindicato nem uma entidade reguladora da actividade económica. É verdade. Mas também é verdade que a Ordem não se pode alhear destes factores, porque eles interferem com o exercício da profissão, e estão a montante de problemas com que mais cedo ou mais tarde a Ordem terá de lidar.
Aqui – tanto no plano nacional, como regional – o balanço não é positivo.
Vemos pouca ou nenhuma mudança no concursamento da encomenda pública. Vemos um mercado que é ciclicamente inundado de estagiários gratuitos. Vemos que muitos colegas no sector liberal vivem como os antigos trabalhadores rurais, a trabalhar “à jorna”. Vemos que as sociedades de arquitectos permanecem completamente fora do radar da Ordem, permitindo todo o tipo de promiscuidades (ao contrário do que se passa, por exemplo, com os advogados).
Não podiam abrir-se muitas frentes de combate ao mesmo tempo – mas esta tem de ser aberta no próximo mandato.
Continuidade de quê?
O futuro reserva-nos, em partes iguais, ameaças e oportunidades, que terão um impacto profundo no exercício da profissão. Se não souber renovar os seus esforços, a Ordem fará parte do problema.
Mais cedo ou mais tarde sentiremos na pele, por exemplo, os efeitos directos e indirectos do novo regime jurídico da urbanização e edificação, ou do novo regime de qualificação dos profissionais, ou do novo regime dos instrumentos de gestão territorial. Ou, simplesmente, da contínua degradação das condições de trabalho.
Avizinham-se eleições, e com elas os programas… e as promessas. E agora? O que é que deve servir de base à elaboração de cada projecto, pelos candidatos, e à sua avaliação por todos nós, membros eleitores?
A experiência demonstra que, em organizações com a Ordem, nem a mudança das pessoas muda as práticas, nem a afinação das práticas depende da continuação das pessoas.
Penso, por isso, que o que é relevante aferir não é tanto a continuidade ou descontinuidade de pessoas e grupos (usada como pedigree por uns ou álibi por outros…), mas a existência de um programa que tenha fôlego reformista, que seja coerente com a verdadeira missão da Ordem, e que saiba fazê-lo através da resposta às necessidades concretas dos profissionais. E que, assuma princípios claros, não se resumindo a uma lista de promessas requentadas ou de queixas correntes.